sábado, 29 de dezembro de 2012

Os poemas que seguem foram escritos  no começo da década de 90. Revisitados, eles mantém o tom carismático do início de minha poesia.

A MINHA CASA




chuva negra goteja
tua gota espessa 
depuradora
irônica
goteja verseja
vai esparramando
três cinco sete
quantos matizes
encontrar pelo caminho
em agulhadas finas
de gotas oleosas

vai, não se cansa
continua que eu vicio
faz um ritmo de dança
de suspiro em dia de acalanto
meia água
                      porão
madeira grossa
escura de solidão
tem a fresta tábua no chão.
......................................................................
 o céu é cinza mas eu sou nobre
o dia é rápido eu sou vagarosa
cachorros ladram
eu me engajo na caravana do alheio
pinto ramos dourados
uso joias de aluguel
não estou nem aí  nem aí
eles também
e não sei mais quem
que fica sempre à parte anotando, brincando,
de dia A noite de B
aquela estrela fica para C
não dou mais do que dois copos de vinho para você
existe o tempo o contratempo o contrassenso
o bom senso
é tudo uma época  um vai vem
quem sabe depois de você
depois de você de você
de você de você
o que é você?
..................................................................................
tua  tua
passageiramente tua
eternamente minha
vou dormir para esquecer
que sou tantas
não sei com nascem e renascem
se esquecem adormecem

as várias que acordam e gritam ou calam
e sou tantas que sempre uma e logo nenhuma
que são os outros?
.......................................................................................

   
de quem é esse chão que amo
que beijo que cheiro
esse chão que me inunda

esse chão que só meu
essas pegadas que só minhas
minha terra que não é minha
nem deles
nunca antes em teu solo
esse amor essa dor.
...............................................................
que perna, que osso
olhos ah, os olhos
cabeça e membros
cabelos, isso de cabelos e
unhas – viram que são unhas
garras
dentes em vozes
silêncio espaços e silêncio
um cheiro ou perfume
a beleza dos teus olhos
teus pés sujos – palavras
acorde da alma

mas quase não faz mais diferença...
................................................................................
já não faz diferença porque o sono
                               o sono vem
devagar eu já me espreguiço e
não faz diferença
é que quando acordo
quero saber
como viver sem saber?

e eu quero tudo
o que foi o que é
o que virá
se instalar
porque como quando
que ritmo e pressupostos
se tem perna ou braço
ou esqueleto ou cabeça
e olhos em fogo em desvio
em fuga, essas cabeças
que na calada da noite espionam
e constroem abrigos e trincheiras
que não entendo

mas não faz mais diferença...
....................................................................................................
só faz diferença o silêncio de uma noite gelada
cheia de estrelas e certezas
de homens que ficam ruminando queixas
e construindo trincheiras
- outras barreiras –
em seus túmulos moradas

se eles vivessem no máximo vinte e cinco anos eu poderia espalmar minha mortalha e bordar meus signos – hinos e desígnios – e chama-los camaradas
mas, lá, na calada da noite figuras escuras bisbilhotando mágoas e arruinando deuses.
....................................................................................................
agradeço senhor  pela vida que me destes
pelo solo dourado que percorri
pelo mar azul que banhei de prazer
pelo amor que não entendi
pelo filho que me fez feliz
pelos amigos que se configuraram em tipos assim
não sei se anti ou pró
pelas estrelas que ficam girando e girando
pelo momento que se tornou sagrado em meus pés e em meu canto
pela voz pelas palavras
pelos sensores pela alma pelos cravos pelos espinhos

mas, se me desses dois ou três minutos de tranquilidade
sem interrogação – passado ou futuro – no escuro
no novo momento – um daqueles de acerto
o redondo, senhor, comigo aposte no redondo, parece que meu senhor
ainda não me entendeu,  jogue na tinta
carregue nos contrastes e me remeta para uma origem ou passagem
simplesmente me retorne em dias sem mistérios
e lá me deixe de forma que sentada em um banco de jardim
eu me transforme em rosas margaridas matagais pirilampos
eu não sei nominar, mas me deixe a divagar levitar
sei lá que diabo eu me encarregue de inventar
eu presto contas –  o grande cínico
francamente onipotente
eu sei, eu sei,
esse grão de areia essa insignificância
lá se foi o heroísmo a bravata a epopeia o definitivo
a chama que totaliza anarquiza
tá legal tá legal

assim pequena e sem sentido, extensa ou densa, e daí? faz diferença?

cuspo na cara do senhor, eu queria é deixar marcas
arranhar os céus
puxa-lo pelos cabelos e  lamber o sangue e as palavras de deu manto
eu queria urrar no universo inteiro
seus animais façam essa porra funcionar direito
ter sentido norte sul
ter eixos – ponham nos eixos
desdobrem esse limítrofe em coordenadas plausíveis
e me deem uma história que eu possa moldar, que eu possa contar,
na qual eu possa acreditar

mas não faz diferença...

porque vi os rostos contrafeitos e os pés sujos das crianças curvadas
e já vi e já calei e não morri...
......................................................................................................
 só faz diferença esse sussurro interior
esse mundo que sou eu e que sou tantas
e parece saber mais do que vocês
mas nem tudo  mas muito
esse mundo que vai revelando segredos
me preparando para o sair de cena
o entrar em cena
o rir da cena
- a não chorar de cena -

essas vozes,  esse hálito que lá dentro tece uma morada
A Minha Casa.


CRAVOS VERMELHOS




se me dessem um caule em cravo – vermelho – numa dessas noites de fim de tarde
de fim de outono, um silêncio de frio gelado
numa dessas noites em que nosso corpo é ardido por um calor sem esperança
estrelas passageiras
- pois estrelas ficam mais distantes e límpidas nas noites frias -
eu montava uma varanda de cravos  de cravos

semeava cravos vermelhos em trilha negra por essas minhas paredes
para depois dormir
dormir com o silêncio que fazem tantos cravos
e tantas estrelas no azul verde escuro da floresta
e tanta solidão na tristeza gelada do pensamento

sabem essas noites transparentes de esperança que não são quentes
mas, em que teu corpo é invadido por agulhadas no frio suave
- eu já estou quase sem nome – e para minhas estrelas
para meus cravos
peço baixinho devagarzinho
que sussurrem,  sussurrem  novamente.

ENFASTIADAS




losangos
dois três quatro
oito triângulos
escrevo meu círculo de
 quadras quadradas
rimas mal acabadas
palavras predestinadas
esvaziadas
enfastiadas.

INJETADOS




como dois ou três serenos
três ou quatro alegrias e soberbas

os homens de olhos injetados e profundos
velhos e cansados mandados do mundo
as meninas esguias gazelas
em seus olhos fundos e rasos

o mundo que esmaga o mundo que apaga

meu copo sobe e desce
meu corpo queima e se cala e se esquece

jovens galados sorriem modas lobas e sem lua
meninas tingidas e perdidas tem  olhos que são
pequenos botões escuros de esquecimento

minha mãe sabia um bolo e um confeito.


LEVITAR




estar em paz é uma espécie de leve flutuar sem as contradições existenciais arquetípicas
em que  iluminados vertebrados se abstém da flecha do tempo e sua invariável direção

mas, se a fonte é dos poetas, não interessa se brincam de equações premonições linguagens
bobagens engrenagens ciência encanto amor espanto espantalho espalhafato
enfim ,mas, se então donos do espaço sempre presente em um final de tarde
branco e quase metafísico holístico paramétrico – quase já não me lembro das coordenadas azuis do movimento e sua necessidade de dados e projetos – eu me fecho
por sobre o dia
por sobre a quase benção
e ressuscito uma tranquilidade que gostaria de enfeitar em palavras livres e soberanas
como um destino e  que, unas e cruas,  são o alvorecer do poente do aceite
são nada e são hastes
silenciam enfeitam absorvem fogem vazias em toda plenitude
e, devassa, esparramo em novas tentativas um objeto, que sei, é o espaço e o dia.

NARCISO



  
iso  iso
Narciso descerrou
a cortina do espelho
água  água cristalina
limpa suja varre
Narciso incorpora
narcisos  narcisos

perfil  perfil
lentamente, perfil
quem  quem
no espelho cobalto
silêncio na serra verde
silêncio que silêncio
que Narciso, que silêncio

Narciso não ouviu resposta
Narciso ficou com o espelho
água cristalina
modula  modula
pedra  pedra  pedra
branca  branca.

Narciso descerrou
ficou silêncio
alvorada  passarada
Narciso sem sol
a água vai levar

palavras palavras
chamem o espelho
façam-no falar
sussurrar
palavras palavras

azul de espelho branco
solidão de deserto branco
desterrada em alma de branco

branco cor de mármore
de silêncio de narciso
de ausência

não há imagem....



branco azul de silêncio
desterro – enterro
enterro -  desterro

rosas de abril
só morrem em março
só empenham sangue
vermelho  vermelho
sangue e sangue
o sangue de ontem
que lambuza meus lábios
- hoje

Narciso descerrou e ficou
parede de objeto azul
forma verde sem remédio
amarelo de passado
imagem branca
sem imagem sem palavras
sem dores flores amores
Narciso ficou



não coloriu mais telas
perdeu as pedras de seu castelo
ouviu os gritos e chorou

Narciso chorou e urrou
na escada cheia de sangue
Narciso se esfarrapou, meu amor...
não estávamos sozinhos
brincávamos de eco romance e aventura
tragédia de panos azuis e latas verdes
fazíamos filmes filhos idéias

sabíamos e sabendo aprendíamos
não éramos dois ou um
mas pessoas pessoas
pessoas como outras pessoas

mas Narciso ficou...

 e mantenho as mesmas paredes
e refaço a leitura
e essas mãos que nunca terminam
falam remexem representam...
queria falar com o espelho
explodir o grito de amor
deixar voar a pessoa que caminha
e as pedras  as pedras
que são brancas e o silêncio
e a matéria – água
Narciso agora é água.